quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Mitologia Celta da Irlanda - parte 1 (Ciclo Mitológico)



Origem: Claudio Quintino Crow





A mitologia celta irlandesa costuma ser dividida em quatro ciclos:

1. Ciclo Mitológico;

2. Ciclo do Ulster;

3. Ciclo Feniano;

4. Ciclo dos Reis





Ciclo Mitológico



A este grupo pertencem alguns dos mais importantes relatos mitológicos da Irlanda celta – o maior de todos sendo, sem dúvida, o Léabhar Gábhala na hÉireann (literalmente “Livro das Tomadas da Irlanda”), mais conhecido como ‘Livro das Invasões’. Trata-se de uma intrincada narrativa que descreve as sucessivas chegadas de povos míticos às terras irlandesas. A primeira ‘invasão’ é liderada pela rainha Cesair que, acompanhada por um pequeno contingente, chega a Inis Fáil (‘Ilha do Destino”, outro nome para a Irlanda) e tenta povoá-la, sem muito sucesso. Seguem-se os Partholonianos, assim chamados graças a seu líder, Partholon e oriundos do leste do Mediterrâneo (Bálcãs?). Os Partholonianos se mostram hábeis colonizadores, introduzem a agricultura e a pecuária, as artes metalúrgicas e outras formas de artesanato, a medicina, desenvolvem leis e introduzem a confecção de cerveja à Irlanda (algo que se tornaria uma tradição). Malaliach, o primeiro a produzir cerveja, é também o primeiro a valer-se de técnicas divinatórias na Irlanda - o que comprova a sacralidade do consumo de bebidas fermentadas como formas de se atingir o êxtase ritual que permite o contato com os deuses (‘divinação’, do latim divinatio/divinare, ‘falar com os divinos’). Os Partholonianos são também os primeiros a precisar enfrentar os temíveis Fomoire (ou Fomorianos), um povo de piratas e saqueadores de que falaremos mais a seguir. Segundo o texto, uma praga levou todos à morte no breve período de uma semana.



O Povo de Nemed, ou simplesmente os Nemedianos, são os próximos a aportarem em terras irlandesas, vindos por mar desde a Cítia. Liderados por Nemed, contavam entre eles o druida Míde, o primeiro a acender uma fogueira sagrada na Irlanda na colina de Uisnech – o centro que unia as quatro províncias da Irlanda celta. Uma fogueira acesa no centro cósmico da Irlanda é algo de grande importância espiritual, e as escavações na colina revelaram grandes quantidades de cinzas – de fato, Uisnech era usada pelos celtas como centro dos fogos de Beltaine. Por três vezes em sua história, os Nemedianos conseguem repelir as hostes invasoras dos Fomorianos. Na quarta batalha, contudo, a raça de piratas leva a melhor e obriga os Nemedianos a pagar um pesado tributo anual, durante o período de Samhain. A tentativa de se livrar dessa opressão fracassa, e os Nemedianos são massacrados – os poucos sobreviventes espalham-se pelo continente europeu. (Alguns historiadores - como T. O’Rahilly -identificam nos Nemedianos elementos que os associam aos Érainn, um dos primeiros povos a historicamente colonizar a Irlanda, por volta de 500 a.e.a.). Após a destruição dos Nemedianos, a Irlanda fica sob o controle dos violentos Fomorianos, uma raça terrível de deuses piratas.

Algumas gerações depois, chegam à Irlanda os Fir Bolg, literalmente os “Homens de Builg”. Os Builg são uma variação da tribo celta histórica dos Belgae, que povoaram áreas no sul da Irlanda, na Inglaterra e no continente europeu, no território que até hoje recebe seu nome – a Bélgica. Mitologicamente, os Fir Bolg descendem de Starn, um dos filhos de Nemed – portanto, não eram desconhecidos na Irlanda, mas sim uma nova leva de invasores Nemedianos, que voltavam para a Irlanda fugindo de opressão nas terras gregas onde originalmente habitavam. O Livro das Invasões explica que são os Fir Bolg a trazer armas de ferro pela primeira vez à Irlanda, e que o reinado de Eochaid mac Eirc é justo e próspero. È o Rei Eochaid que determina que as colheitas serão anuais – uma conexão clara com o desenvolvimento da agricultura. O fato de sua esposa Tailtiu ser uma deusa ctônica é outro ponto que mostra a ligação dos Fir Bolg com o desenvolvimento agrícola (Posteriormente, Tailtiu será a mãe adotiva de Lugh, um dos principais deuses celtas). Curiosamente, durante o período de ocupação dos Fir Bolg, os sempre terríveis Fomorianos não são mencionados. Quem viria a interromper a dominação Fir Bolg seria os mais formidáveis invasores da Irlanda: os Tuatha de Danann.

Lugh, Manannan mac Lír, Brighid, Morríghan, Dagda, Nuada, Ogma, Angus Óg, Bóann – quem se interessa por mitos e lendas celtas certamente já viu ao menos alguns desses nomes antes. São os mais importantes deuses e deusas da mitologia celta irlandesa, seres poderosos, divinos, passionais, carismáticos. Oriundos de quatro cidades míticas – Falias, Findias, Gorias e Murias – de onde trazem quatro tesouros (cada um associado a um dos quatro elementos), os Tuatha de Danann chegam à Irlanda vindos do Oeste – a direção do Outro Mundo – em navios mágicos envoltos por uma bruma que eclipsa o sol por três dias. São eles a introduzir na Irlanda o conhecimento druídico (draíocht), bem como a criação de suínos. Eles derrotam os Fir Bolg na Primeira Batalha de Moytura, e depois, sob a liderança de Lugh Lamfhóta, finalmente repelem os temíveis Fomorianos de uma vez por todas na Segunda Batalha de Moytura, estabelecendo uma ‘era dourada’ de paz e prosperidade durante a qual reina a magia e a força desses deuses e deusas. Uma dessas deusas é Ériu, que dá seu nome até hoje à República da Irlanda – Éire. A chegada dos Milesianos, um grupo de mortais liderados por Mil Espáine, põe fim ao domínio dos Tuatha de Danann que, dali por diante, passam a habitar as colinas ocas e/ou as ilhas paradisíacas a oeste da Irlanda – entre elas, Emain Ablach, a “Fortaleza das Macieiras” (associada à Avalon Arthuriana) e a “Ilha dos Abençoados”, Hy Brasil.



De forma grosseira, podemos dizer que os Tuatha de Danann deixam de habitar este mundo e passam a viver noutra dimensão, mais sutil, espiritual – mas ainda em contato com esta realidade. Prova disso é sua habilidade de transitar entre nós, mortais, graças ao encantamento conhecido como féth fiada (‘maestria da névoa’) ou ceo druídecta, o ‘fog druídico’, através do qual o ‘usuário’ fica invisível ou assume a forma de um animal – xamanismo novamente.



Os Milesianos são a última onda migratória a se assentar na Irlanda. Após derrotarem os poderosos Tuatha de Danann, o povo liderado por Mil Espáine se estabelece nas terras irlandesas e encerra o “Livro das Invasões”. De todos os fatos narrados no texto mitológico, a invasão dos milesianos parece ser a que mais possui equivalência histórica, por sua associação com os Goidels, ancestrais dos modernos irlandeses. Segundo o Livro das Invasões, os Milesianos vêm da Cítia e se instalam na Península Ibérica, na região onde hoje fica a cidade portuguesa de Bragança (Trás-os-Montes, uma área rica em vestígios da ocupação celta pré-romana). De lá, partem para a Irlanda, onde aportam durante Beltaine, após demonstrarem grande conhecimento de magia. Um dos mais belos exemplos dessa magia é o poema recitado por Amergin, o primeiro bardo da Irlanda, ao desembarcar.

 
Sou o vento que sopra sobre o mar;

Sou a onda das profundezas;

Sou o rugido do oceano;

Sou o Gamo de Sete Batalhas;

Sou um falcão no penhasco;

Sou um raio de sol;

Sou a mais verdejante das plantas;

Sou um javali em fúria;

Sou um salmão no rio;

Sou um lago na planície;

Sou uma palavra de Sabedoria;

Sou a ponta de uma lança;

Sou a fascinação para além dos confins da terra;

Como os deuses, posso mudar de forma.




Conhecido como a Canção de Amergin, esse poema é uma ode à Natureza - tão nobre e inspirador quanto os textos sagrados hindus. Parafraseando Peter Beresford-Ellis, “nesta canção, Amergin une o universo a seu próprio ser, num pensamento filosófico que remete à declaração de Krishna no Bhagavad Gita hindu”.

 
Assim como os textos mitológicos indianos estão repletos de referências históricas e vice-versa, também na Irlanda celta o mesmo se aplica. Por analogia, se Shiva, Sarasvati, Ganesh e outas deidades hindus são ainda hoje cultuadas após a restauração do hinduísmo nos últimos séculos, também os deuses e deusas celtas permanecem vivos nos corações, nas mentes e nas almas dos que procuram restaurar a mitologia/espiritualdiade celta como fonte coerente e válida de inspiração para nossas vidas.




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