terça-feira, 2 de novembro de 2010

Afinal, quem são os celtas?





Artigo retirado de: Claudio Quintino Crow




"Chamam-se povos indo-europeus os que utilizam uma das línguas indo-européias."
- Pierre Lévéque, As Primeiras Civiizações Vol III

Os celtas falavam línguas de origem indo-européia, variações das quais ainda existem em nossos dias na forma do irlandês, do gaélico escocês, do córnico, do idioma falado na Ilha de Man, do galês e do bretão – portanto, é correto afirmar que os celtas pertenciam à grande família cultural indo-européia. Isso os põe em parentesco – ainda que em alguns casos bem distante - com outros importantes povos da Antigüidade, como os germânicos, os eslavos, os gregos, os romanos e os indianos - todas essas culturas têm as mesmas origens indo-européias, mas diferenciam-se pelo contato e absorção das culturas com as quais se mesclam em seu longo e contínuo processo de desenvolvimento. Mais uma vez citando Lévéque, "cada um dos povos 'indo-europeus', na sua localização histórica, resulta de uma síntese étnica entre, pelo menos, populações pré-históricas locais cujas raízes remontam no local até os tempos paleolíticos e, por outro lado, imigrantes portadores de uma língua indo-européia cuja imposição à região e evolução local desembocam nas línguas historicamente atestadas."

Uma vez que as línguas são apenas um de vários aspectos que determinam a idade cultural de um povo, podemos intuir que os celtas, além da língua, herdaram também costumes sociais e valores espirituais de seu passado indo-europeu.

"Entre os indo-europeus toda noção tende a tomar forma, todo princípio é personificado. Grande parte do panteão dos deuses provém desta tendência de considerar a idéia viva e o pensamento vívido."
-Jean Haudry, Os Indo-europeus

Essa afirmação corrobora com a visão clássica dos celtas serem, já em sua origem indo-européia, animistas por natureza – visão atestada pelos incontáveis exemplos de deuses e deusas celtas como personificações das forças da natureza. Na terminologia usada por Haudry, a "noção" e o "princípio" dos rios, por exemplo, "toma forma" e é "personificada" por deusas – Síonann e Bóann na Irlanda (rios Shannon e Boyne), Clótha na Escócia (rio Clyde), Sequana na Gália (rio Sena), apenas para citar algumas.

Outros elementos irrefutavelmente indo-europeus da cultura celta são a valorização da vida e da busca dos prazeres e confortos, o enaltecer da glória pessoal e da honra (o caráter) como sendo a principal qualidade do indivíduo.

Assim, não basta ao herói ou heroína a busca pela glória no sentido de "conquista": a verdadeira glória é aquela que é obtida dentro de rigorosos princípios de honra, ética e caráter.

Um dos maiores desafios dos pesquisadores – historiadores, paleontólogos, lingüistas – foi determinar qual território teria sido o ponto inicial da cultura indo-européia. Apesar de ainda existirem pontos discutíveis acerca desta ou daquela afirmação, parece seguro dizer que os indo-europeus surgem no que hoje é o Irã, e dali se expandem em duas vagas – uma para leste, outra para oeste. A que nos leva ao Ocidente é justamente a que vai originar a cultura celta.



O Nascimento dos Celtas

“Quando os celtas surgem pela primeira vez nos registros históricos, por volta de 500 a.e.a., aparentemente eles já haviam ocupado grande parte da região dos Alpes e as áreas imediatamente ao norte, na França central, e em partes da Península Ibérica.

Tradicionalmente, esses primeiros celtas costumam ser amplamente associados à cultura Hallstatt da Idade do Ferro européia. As escavações revelam tumbas ricamente adornadas, tidas como pertencentes aos chefes tribais ou às classes reais, e associadas a uma série de centros de defesa. Esses ‘principados’ nos fornecem evidências de comércio com o Mediterrâneo clássico, especialmente com a colônia grega de Massalia (Marselha).”

A partir do quinto século a.e.a., num território que se estende do leste da França até a Boêmia, surgiu uma nova cultura celta, que recebe o nome do sítio arqueológico de La Téne na Suíça, onde foi identificada pela primeira vez. Também esta fase se caracteriza por sepultamentos esplendidamente decorados, contendo evidências de contato com o mundo clássico (cidades etruscas, através dos Alpes). Pouco depois de 400 a.e.a., estes celtas La Téne irromperam através dos Alpes, invadindo e estabelecendo-se no vale do Rio Pó e saqueando Roma por volta de 390 a.e.a. Os romanos os conheciam como Galli, gauleses – um termo posteriormente aplicado especificamente aos celtas da França. Outros migraram através dos Bálcãs, atacando a Grécia e saqueando Delfos talvez em 279 a.e.a. Conhecidos pelos gregos como Keltoi ou Galatae, alguns deles cruzaram o Helesponto e instalaram um reino na Turquia Central (a Galácia).”
-- Simon James, Exploring the World of the Celts

Uma cultura não nasce da noite para o dia: o processo é longo e envolve, como vimos anteriormente, a mescla de diversas culturas originais diferentes entre si, mas que contribuem para a geração de uma nova identidade cultural. A primeira etapa do desenvolvimento da cultura celta, conhecida como Hallstatt, costuma ser identificada com o período que vai de 700 a 450 a.C., mas seguramente variações dos idiomas celtas já eram falados pela Europa muitos séculos antes. A chegada do idioma indo-europeu à Europa costuma ser datada em torno de 4000 a.C., quando teria ocorrido uma invasão de povos indo-europeus, e a partir de então suas diversas ramificações se desenvolveram .

Os paleo-lingüistas apontam para o vale do rio Danúbio, na Europa Central, como o berço onde surge o idioma celta. Os vestígios arqueológicos da região mostram que, nessa área, desenvolveu-se a cultura Hallstatt, caracterizada por fortificações em colinas, sepultamentos ricamente elaborados (alguns com carruagens inteiras) e uma arte singular. Nessa área fica a vila austríaca de Hallstatt onde, em 1846, Georg Ramsauer descobriu um cemitério da Idade do Ferro. As escavações revelaram mais de mil sepulturas com objetos – espadas, escudos, lanças, cerâmica – de formas características, identificadas com a cultura celta. Anos depois, em 1857, uma seca no lago Neuchatel, na Suíça, revelaria uma nova fase da evolução da cultura celta, que receberia o nome da vila às margens do lago: La Tène.

As traduções dos textos de autores clássicos – gregos e romanos – localizavam os celtas precisamente naquela área. Assim, conhecemos hoje o berço da cultura celta.


Expansão

Conforme nos ilustra Simon James no tópico anterior, os celtas promoveram incursões regulares às terras circunvizinhas, culminando com a expansão dos territórios por eles povoados. Partindo de suas terras na Europa Central, os celtas estabeleceram-se nas Ilhas Britânicas (700 a.e.a.), na Península Ibérica (600 a.e.a.), no norte da Itália (400 a.e.a.), saquearam Roma (390 a.e.a.), cruzaram os Cárpatos (310 a.e.a.), saquearam Delfos na Grécia (279 a.e.a.), fundaram os reinos celtas da Galácia na Ásia Menor e de Tylis nas margens do Mar Negro e quase certamente se estabeleceram ao longo do Rio Don, na Ucrânia. Essas diferentes ondas migratórias não fazem parte de um processo articulado, mas são a ação natural de um povo para quem a guerra e a conquista era um modo de vida.


Guerra e Comércio

Por suas origens indo-européias, as tribos celtas sempre mostraram uma grande pré-disposição para a guerra – seja entre eles, seja contra outros povos. A adoção da metalurgia em ferro, por volta de 750 a.e.a., fez deles guerreiros ainda mais temíveis. Mas os celtas não eram, ao contrário do que algumas fontes fazem supor, um bando de bárbaros sanguinários.

Os primeiros contatos entre celtas e gregos ocorreram de forma pacífica, na colônia comercial de Massalia (atual Marselha), fundada em 600 a.e.a. Ali, os celtas (chamados pelos gregos de keltoi) forneciam os bens que os gregos desejavam – metais, peles, escravos, mel e âmbar - em troca de cerâmica e, principalmente, vinho. (Esta, aliás, é a origem de alguns dos mais cobiçados vinhos modernos: as vinícolas às margens do Ródano – literalmente, Côte du Rhône – foram criadas para saciar a sede dos nobres celtas pelo néctar fermentado das vinhas. Desde então, o vinho que lá se produz é um dos melhores do mundo – ancestrais videiras celtas!).
O comércio, aliás, foi o responsável pela chegada da cultura Hallstatt às Ilhas Britânicas, por volta de 550 a.e.a. – mercadores costumavam navegar até aquelas terras em busca de matérias primas como o cobre, o estanho e o ouro.
O comércio entre os celtas e o mundo clássico parece ter surtido um efeito nefasto: os vestígios tumulares indicam a formação de uma elite dominante e altamente dada à ostentação, possivelmente motivados pela competição entre os chefes tribais que disputavam o comércio. Mas mudanças nas rotas comerciais de então trouxeram um fim abrupto para a cultura Hallstatt – e talvez a concentração de renda e poder nas mãos de poucos tenha contribuído para a revolução cultural que se seguiu, dando origem ao período La Tène da cultura celta, que surge na região da Boêmia, por volta de 450 a.e.a., e que chega à Grã-Bretanha poucas décadas depois.
Este período foi marcado por grandes ondas migratórias, como a que levou tribos celtas para o norte da Itália em 400 a.e.a., com o subseqüente saque de Roma por celtas liderados por Brenno. Ao sitiar a cidade e invadi-la, Brenno cobrou aos romanos um pesado tributo em ouro para poupar-lhes a vida e a cidade. Consta que, ao ver o ouro que era pesado pelos celtas, um romano teria se lamentado, ao que Brenno respondeu a célebre frase: “Vae Victis”, “Ai dos vencidos!” Mas o que teria cuasado as migrações? Ao que tudo indica, superpopulação, que teria gerado graves tensões sociais, especialmente diante de uma elite que concentrava cada vez mais riqueza e poder. A busca pelas terras ao sul – Itália e Grécia – soa natural, visto que eram terras férteis e promissoras. As invasões celtas são retratadas por Tito Lívio, que relata como Bellovesus e Segovesus lideram as hordas celtas que cruzam os Bálcãs em 280 a.e.a. Outro grupo de celtas, coincidentemente liderados por um outro Brenno, chegaria a invadir Delfos, o coração espiritual – e sede dos tesouros – das cidades gregas. Reza a lenda que uma tempestade trouxe loucura e caos às hostes invasoras e o celtas, ensandecidos, mataram-se uns aos outros. Ainda que alguns relatos mitológicos posteriores nos informem que os celtas possuíam um furor de batalha semelhante aos ‘berserkers’ nórdicos, é pouco provável que essa loucura tenha acarretado a derrota dos bem preparados guerreiros celtas.

Os gregos dizem que foram seus deuses que salvaram Delfos. Historiadores modernos dizem que talvez Lívio tenha criado essa história para mascarar um tributo humilhante imposto pelos invasores, nos moldes do que o outro Brenno fizera ao invadir Roma.
Mas nem sempre os gregos viram nos celtas inimigos: há registros de mercenários celtas (gaesatae) que teriam lutado ao lado de gregos. E mesmo um dos maiores personagens da História Antiga, Alexandre Magno, teria recebido respeitosamente uma embaixada de celtas – segundo alguns autores, druidas – que o visitaram em Babilônia por volta de 323 a.e.a.
Já pelos romanos, os celtas sempre foram vistos como um povo temível, e a invasão e povoação das terras ao norte da Península Itálica por tribos celtas como os Boii, os insubres e os senones mostraram que Roma tinha razão mesmo em temê-los. A expansão dos senones só é interrompida quando, em 295, os romanos lhes impõem uma crucial derrota em Sentinum. Roma começava a se livrar de seus inconvenientes vizinhos do norte. Longe dali, na Trácia, os celtas conhecidos como gálatas fundam os reinos de Tylis e da Galácia, e guerreiros celtas são recrutados no Egito pelo Faraó Ptolomeu I.

Os celtas da Gália Cisalpina – a Gália “deste lado dos Alpes”, como os romanos chamavam o norte da Itália – sofreriam uma humilhante derrota para as legiões de Roma na Batalha de Telamon, mas dariam o troco anos depois, ao apoiar a invasão da Itália pelos cartaginenses liderados por Aníbal. Mas Roma, então, já era uma grande força militar, e resistiria para formar um dos mais formidáveis impérios da História.


Declínio

Séculos de contato com as culturas grega e romana levaram os celtas da Gália a absorver naturalmente muitos costumes mediterrâneos. Além da visível influência nas artes, os celtas adotaram o uso de moedas e começaram a desenvolver estruturas proto-urbanas chamadas de oppida (singular, oppidum), encontradas numa vasta área que se estende do Danúbio até a Península Ibérica e o sul da Grã-Bretanha. A despeito disso, porém, o grosso da população celta ainda vivia em pequenas vilas e estabelecimentos rurais.

No extremo oeste da Europa, nas terras hoje portuguesas, vivia a tribo celta dos Lusitani – assim descritas pelos romanos: “nos confins da Europa, onde as terras beijam o mar, vive um povo selvagem que não se governa e não se deixa governar”. Em 139 a.e.a., cansados de tamanha indisciplina, os romanos assassinam Viriato, líder dos Lusitani – a expansão de Roma não podia parar...
Anos depois, a anexação do sul da Gália por Roma dá origem a uma nova província romana – até hoje conhecida como Provence. É mais ou menos neste período que foram redigidos alguns dos mais preciosos registros da cultura celta da Gália, graças às viagens do grego sírio Poseidonius. Os textos de Poseidonius são surpreendentemente neutros para um grego, e seus relatos recolhidos in loco mostram o dia-a-dia, ois valores e costumes dos celtas. O texto integral da Historia de Poseidonius infelizmente se perdeu, restando apenas trechos citados por autores posteriores, como Diodoro da Sicília, Estrabão, Ateneu e outros. Seja como for, a ele devemos muito do que hoje se sabe sobre os celtas continentais.

No ano de 58 tem início a conquista da Gália. Os relatos de Julio César em De Bello Gallico constituem outra importante fonte de referência sobre os celtas, se bem que devam ser filtrados pela natureza panfletária de seus textos, cuja intenção fundamental era justificar suas campanhas contra os celtas junto ao senado. Em 55, Julio César finaliza a conquista da Gália após a batalha de Alésia, quando o líder gaulês Vercingetorix depõe suas armas. Vercingetorix é até hoje comemorado pelos franceses como um herói, e realmente ele se destaca por ter conseguido um feito inédito: unir tribos celtas diferentes sob seu comando – a autoridade intertribal era uma característica que só os druidas possuíam e há indícios que o próprio Vercingetorix fosse um druida.

Os druidas gozavam de ampla ascendência na sociedade celta, e parece óbvio que as conquistas das terras celtas da Gália e da Bretanha só seriam possíveis aos romanos quando estes se livrassem dos druidas. Julio César é taxativo ao afirmar que os druidas da Gália dirigiam-se à Bretanha para lá serem instruídos, e é por isso que, após a conquista da Gália, os romanos lançam-se com força sobre as terras britânicas. A invasão de 43 e.a. é comandada pelo Imperador Claudius – ele próprio nascido em território gaulês, na cidade de Lugdunum (moderna Lyon). Na Bretanha, Claudius depara-se com uma feroz resistência liderada por Cunobelinus, que mais tarde inspiraria a personagem Cymbeline de Shakespeare. A resistência dos celtas britânicos cai por terra quando, em 51, o líder Caratacus é capturado. Menos de dez anos depois, os romanos promovem o terrível massacre da Ilha de Môn (Anglesey, País de Gales) – um centro druídico onde a barbárie dos legionários romanos é reprovada até pelo historiador Tácito. Em Anglesey, mulheres, crianças e idosos são massacrados pelas legiões de Roma. A destruição do centro druídico de Anglesey parece ter relação com a revolta liderada pela rainha Boudicca no ano 60.

Boudicca escreve uma das mais dramáticas páginas da história dos celtas, ao unir sob seu comando tribos diferentes na tentativa de expulsar os romanos da ilha da Grã-Bretanha – e quase consegue, impondo pesadas derrotas aos romanos. Mas sua resistência também se mostra insuficiente para deter as legiões, e diante da derrota iminente, Boudicca comete suicídio, preferindo tirar a própria vida a ser capturada e novamente humilhada pelos romanos. Aqui cessam os registros clássicos dos celtas. As terras da Gália, da Grã-Bretanha, da Galácia e da Ibéria, não eram mais celtas, mas romanas; as tribos dos Boii, dos Sequani, dos Belgae e dos Parisi não eram mais livres, pois haviam sido romanizadas e subjugadas. Os celtas deixavam o mundo real e passavam para as páginas da história. E esta página, ao menos no continente europeu, estava virada.


Sobrevivência

Mas as sandálias dos legionários romanos jamais pisaram a Hibernia. A oeste da Grã-Bretanha, essa grande ilha nos confins da Europa estava envolta em mistério. Habitada por tribos celtas que se desenvolveriam longe dos olhos de gregos e romanos, a Irlanda seria o último bastião da cultura celta, e continua sendo uma fonte maravilhosa para a compreensão do legado dos celtas. Também a Escócia, isolada pelos romanos com a construção de uma muralha que ligava um litoral ao outro da ilha, foi capaz de preservar elementos da cultura celta – e o mesmo se aplica ao País de Gales.

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