terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Mitologia Celta da Irlanda - parte 3 (Ciclo dos Reis e Imramma, Jornadas ao Outro Mundo )



Ciclo dos Reis

Descrito como “menos mágico do que o Ciclo Mitológico, menos heróico do que o Ciclo do Ulster e menos romântico do que o Ciclo Feniano” (James MacKillop), o Ciclo dos Reis retrata os feitos de diversos reis históricos de pequenos reinos locais da Irlanda. É importante alertar que a palavra “rei” no sentido celta é bem diferente da visão moderna do déspota plenipotenciário ou da figura alegórica que caracterizam os reis no imaginário popular de nossos dias. O rei celta deveria ser “física, mental e espiritualmente íntegro”, pois de seu casamento simbólico com a Soberania do Reino dependia a prosperidade da terra e de seu povo. Os reis celtas costumavam ser escolhidos não por sua linhagem, mas por seu valor e sabedoria – o que não impedia o estabelecimento de famílias reais que deram origens à visão da liderança dos clãs. A própria palavra ‘clã’ vem do irlandês clann, literalmente, ‘família’ – não a família nuclear que conhecemos, mas a família estendida, a tribo. É o que vemos em Baile in Scáil, “O Êxtase Poético do Espectro” no qual o ‘espectro em questão é ninguém menos que o poderoso deus Lugh surge ao lado de sua esposa, a Donzela da Soberania da Irlanda, diante do rei Conn “das Cem Batalhas” para lhe oferecer a taça com a cerveja vermelha da Soberania – um tema intimamente associado à imagem do Graal arthuriano. A pergunta que o cavaleiro Perceval deveria ter feito ao Rei Pescador no romance medieval Persival – “a quem serve o Graal?” – surge nesta lenda irlandesa anterior e pouco conhecida: ao ofertar o cálice com a cerveja vermelha a Donzela da Soberania pergunta a Lugh: “a quem devo ofertar esta taça?”

Outro texto importante deste Ciclo é “A Loucura de Suibhne”, em que o Rei Suibhne, o Louco desafia o cristianismo de São Ronan e, como resultado de ‘maldições’ lançadas pelo cristão, enlouquece e passa a viver como um pássaro, voando pelos bosques da Irlanda e recitando poemas que são verdadeiras odes à Natureza e às árvores. Pelo paralelo facilmente estabelecido com a história britânica de Myrddyn / Merlin, que também ‘enlouquece’ e passa a profetizar em meio à natureza, podemos identificar em ambas as histórias sobrevivências de elementos xamânicos pré-cristãos da espiritualidade celta.

Imramma, Jornadas ao Outro Mundo
 
Outro componente de natureza bastante xamânica da literatura celta irlandesa são as lendas conhecidas coletivamente como immrama, ou literalmente, “remações”, viagens por água, que são jornadas ao outro mundo – retratado como ilhas sagradas a oeste da Irlanda. Entre elas, citamos a “Balada de Oisín no Outro Mundo”, em que o herói Oisín, filho de Fionn Mac Cumhaill, viaja para Tír na nÓg, a ‘Terra da Juventude’, numa jornada por mar em companhia da belíssima – e divina – Niamh “dos Cabelos Dourados”. Lá ele passa 300 anos como esposo de Niamh, que lhe concede três filhos. Quando ele decide visitar a Irlanda, Niamh tenta demove-lo da idéia, mas por fim ele parte no cavalo branco dela, com instruções expressas de jamais descer do cavalo. Ao retornar, a Irlanda que ele encontra está transformada – os grandes e nobres Fianna haviam desaparecido, os homens são fracos e sem dignidade. Por fim, Oisín acaba descendo do cavalo, o que faz com que ele envelheça todo o tempo que ele estivera fora.
Em “A Viagem de Bran mac Febail”, o protagonista também é atraído ao Outro Mundo por uma linda mulher que lhe surge num sonho (transe xamânico?). Sua jornada pelos domínios do deus Manannán (o mar) é plena de maravilhas, passando por diversas ilhas mágicas repletas de simbolismo até que também ele retorna para uma Irlanda que ele não reconhece – afinal, o tempo passado no Outro Mundo correra de forma diferente... ele relata suas aventuras usando varetas com inscrições em Ogham – o alfabeto sagrado dos druidas irlandeses – e em seguida retorna para o Outro Mundo.
A imram de Bran é em diversos aspectos muito semelhante à de Mael Duin, e seu simbolismo oculto foi ricamente explorado pela autora Caitlín Matthews em sua obra “O Livro Celta dos Mortos”, um inspirado trabalho oracular facilmente compreendido por quem se disponha a estudá-lo.
Elementos de ambas são encontrados na obra Navigatio Sancti Brendani, a “Viagem de São Brandão, o Navegador”, um místico irlandês que, no século VI, teria feito uma jornada a terras pardisíacas a oeste da Irlanda. A popularidade desse texto levou-o a ser redigido em diversos idiomas, inclusive no português – daí não ser difícil estabelecer uma correlação bastante direta com a nomeação, em eras posteriores, das terras descobertas pelos portugueses na América com um dos nomes das ilhas sagradas da mitologia irlandesa, alcançada justamente por uma imram: Hy Brasil, a “Ilha dos Abençoados”. O fato de São Brandão de Clontarf ser uma personagem histórica oriunda da classe druídica da Irlanda aumenta a importância dos relatos e de sua relevância mística na nomeação das terras brasileiras.

Ao final de toda imram, chega-se ao Paraíso, as terras sem maldade, sem doenças, onde todos permanecem jovens: o mundo perfeito. As imramma podem ser, assim, vistas como jornadas míticas que nos levam a uma visão da perfeição, para que essa perfeição informe nossa ação no mundo em que vivemos – o trabalho de cura e transformação inspirada do mundo, função fundamental dos mitos e lendas de todos os povos.




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