Autor: Claudio Quintino Crow
Origem: http://druidnetwork.org/br
Samhain, do irlandês “fim do verão”, é o ano novo celta,acomodado no dia 1 de novembro do calendário moderno.Na verdade, Samhain é um período fora do tempo,
intermediário entre o ano que acaba e o que está por se iniciar. É a área neutra, o limite, a fronteira, o in-between, a “terra-de-ninguém” dos campos de batalha.
E muitas batalhas foram travadas em Samhain, assim como muitos eventos importantes ocorrem nesta mesma data.
A começar pela mágica união divina entre Dagda, deus associado à virilidade e à fartura e restauração da vida, com Morríghan, cujos domínios são a guerra, a profecia e a morte.
Em Samhain também ocorria O Feis Temhair, o Festival de Tara, em que delegações das Cinco Províncias da Irlanda reuniam-se no palácio de Tara, a cada três anos, para as
celebrações, festividades, disputas e ajustes que mantinham vivas e saudáveis as comunidades da Irlanda celta. Samhain está associado ao Hallowe’en – nomenclatura
cristã, abreviação das palavras All Hallows Evening, ou seja: A Noite de Todos os Santos. De fato, no séc. VIII, os cristãos alteraram seu calendário para acomodar a data que celebrava todos os santos (inclusive os mártires desconhecidos que morreram em nome da nova religião), trazendo-a para perto de outra data cristã, hoje conhecida como Finados, em que todos os ancestrais falecidos eram homenageados.
Santos no dia 1, ancestrais no dia 2: com este ajuste, os cristãos preservaram – ainda que sob o verniz cristão – o antigo festival celta de Samhain que, por ser o portal temporal que nos coloca em contato com o Mundo Espiritual, é propício para o convívio entre os vivos e seus ancestrais e deuses. Nada mudou.
Por que, podemos perguntar, teriam os cristãos preservado a data e seu tema? Porque ela é profundamente arraigada na alma coletiva do mundo ocidental. Os celtas da Irlanda celebravam Samhain, os cristãos passaram a celebrar Todos os Santos e Finados – e a Astrologia nos propõe exatamente os mesmos temas.
No período em que ocorre Samhain, a constelação dominante é Scorpio, e o signo zodiacal de Escorpião tem como temas a capacidade de regeneração, a força de morte e
renascimento, a sexualidade e a espiritualidade mais profunda. Muitos desses temas podem ser vistos nas lendas da Irlanda celta associadas à data: ao já mencionado encontro amoroso de Dagda e Morríghan somam-se os encontros do mesmo Dagda com Boann e uma outra deusa cujo nome permanece um mistério. Em todos esses encontros, o tema central é o sexo sagrado entre as divindades. Por ser o “fim do verão” (Samh + Fuinn), Samhain anuncia a aproximação dos cruéis – imagine-se na Idade do Bronze – meses gélidos do inverno. Sem dúvida, as forças vitais precisariam lutar para vencer a morte no frio inverno europeu.
O fato de serem deuses a copular também ecoa a espiritualidade profunda associada ao signo de Escorpião. Para os que se contentam com leituras superficiais dos mitos, Samhain costuma ser visto como um festival sinistro, obscuro. Mas a cópula divina é algo a ser celebrado – a manutenção da vida é garantida por essa cópula. E a festa trienal de Tara indica que o período era visto como propício para festividades e atividades importantes da vida da comunidade. Ainda mais se levarmos em conta que, no folclore irlandês, este período era visto como propício para que mulheres engravidassem. Pode soar estranho para nós, em nossos dias de medo e ignorância da morte. Para povos que não fazem da morte um tabu, porém, essa proximidade é bastante natural.
Ainda no âmbito da astrologia, o signo de Escoprião tem como regente Plutão. Muito mais do que um planeta, Plutão é um deus romano. Seu equivalente helênico é Hades, Senhor do Reino do Submundo que leva seu nome e que é a morada dos mortos e dos ancestrais - portanto, a mesma temática encontrada nos mitos e costumes associados a Samhain – morte-renascimento, espiritualidade profunda, sexualidade, poder regenerativo - é reforçada pela astrologia.
Isto quer dizer que a astrologia influenciou a espiritualidade celta? Não – e tampouco o inverso: na verdade, tanto os mitos da Irlanda celta quanto os mitos gregos de Deméter e Perséfone, quanto a astrologia e as festas cristãs de Finados e Todos os Santos são somente variações de um mesmo tema, interpretações distintas de um
mesmo momento mágico supracultural e atemporal, cuja força só pode ser concebida quando pomos em perspectiva o vasto período de tempo e as longas distâncias físicas que
separam a astrologia indiana – ou mesmo a persa – das lendas celtas, os mitos helênicos dos costumes cristãos.
É verdade que todos os mitos do mundo são moldados pela paisagem das terras em que vive a cultura que os desenvolvem; mas também é verdade que, como culturas costumam migrar para outras regiões, os mitos se desatrelam da paisagem que os originou sem que isso, em hipótese alguma, tire sua força e seu simbolismo. Muitas das constelações do Zodíaco sequer são visíveis no Hemisfério Sul, mas nem por isso questiona-se a valia da astrologia – desenvolvida no Hemisfério Norte - em nosso hemisfério.
A este mergulho na essência dos mitos dá-se o nome de mitopoese – o estudo da essência transformadora por trás dos mitos, que é o mais poderoso elemento na vivência de um ritual.
Se os temas deste período serão chamados de Samhain, Finados ou Sol em Escorpião, pouco importa: o que realmente interessa é sua compreensão e, mais importante ainda, sua vivência plena.
Este é um momento transformador, um limiar entre mundos, uma chance de encarar as mudanças que se fazem necessárias, de abraçar com carinho e volúpia as transformações bruscas que a ciclicidade da vida nos propõe para abrir espaço para o novo, para a evolução, para a regeneração. Mais do que um momento de cultuar deuses ou ancestrais (mas não são o mesmo do ponto de vista celta?), Samhain propõe a vivência dos mitos em nossas próprias vidas pessoais. Com a dor que o fim e a morte costumam trazer, com o prazer do reinício pleno de oportunidades e prazer.
Feliz Ano Novo. Feliz Samhain!
Sláinte!